O livro teve uma grande tiragem e a crítica criticou. Por exemplo o Jornal de letras pela palavra de Rodrigues da Silva, jornalista que eu não conhecia nem me conhecia diz coisas que até... até me deixou incrédulo.
JL JORNAL DE LETRAS, ARTES E
IDEIAS
Ano XX / N.º
789 de 27 de Dezembro de 2000 a 9 de Janeiro de 2001
Secção IDEIAS, página 40. Texto de Rodrigues da Silva, editor do
JL
HISTÓRIA Segredos da A. R. A.
HISTÓRIA Segredos da A. R. A.
Defeito
ou virtude? Hesito. É que “ARA – Acção Revolucionária Armada. A história
secreta do braço armado do PCP” (Dom Quixote, 406 páginas, 3500$00), o livro de
Raimundo Narciso (RN), eu li-o como... um romance. Não era esta a intenção. A
intenção era outra, e, mal o comprei fui-me a ele, armado daquilo de que
Marguerite Yourcenar sempre se muniu no acto de ler: um lápis. Para sublinhar.
O que amiúde mais me acontece num ensaio ou na poesia do que num romance. Para,
não raro, concluir que quão mais sublinhado fica um livro, tão melhor ele é (ou
eu o achei). No caso do de RN, porém, sucedeu algo de inédito. No final está
sublinhado como se fora o que, em rigor, não é: uma obra de ficção. Defeito,
pois, ou virtude?
Virtude
– assumo. E virtude porque o pouco sublinhado da minha leitura deve-se ao
estilo que RN imprimiu à sua obra. Mais do que um relatório, a vida. Isso
mesmo: a vida. E, ao escrever isto, descubro (só agora) que a narrativa do
livro fluiu a um ritmo algo cinematográfico. Porque, se por um lado há uma
descrição pormenorizada e exaustiva de todas as acções da ARA, com a relação
dos seus comos, quês e porquês, por outro não deixa de haver – sempre – o traço
humano, o ser e estar pessoal e anímico dos protagonistas, o alvoroço de
sentimentos. Mais: recorrendo ao “flash back”, RN subverte até, de quando em
vez, a ordem cronológica da narrativa para, após dizer da acção, dizer de como
era este ou aquele que a executaram.
O
resultado é fascinante. Porque, para além da História, temos as histórias. E é,
decerto, porque temos as histórias que a História adquire aqui tudo menos um
tom épico. Podemos (e talvez devamos) classificar muitos destes protagonistas
como heróis da resistência ao fascismo. Mas um herói é sempre um ser distante.
O bronze que o embalsama afasta-o de nós, seres comuns. RN tem o extraordinário
mérito de, narrando acções heróicas, aproximar de nós os seus executantes. Que
nos surgem de carne e osso, não robots, clonados por uma ideologia. São homens
e mulheres de corpo e espírito, múltiplas vezes plenos de dúvidas. Mas que,
mesmo assim, face a uma situação concreta, optam. Apesar do medo, do medo de
falharem, de serem presos, de serem torturados, de passarem anos sem ver os
pais, as mulheres (ou os maridos) e os filhos, os seres amados; e há imenso
amor nas entrelinhas deste livro.
Livro
que RN imbui de um humanismo que só valoriza o retrato pelo menos dos
principais membros da organização, como ele próprio, um dos seus dirigentes de
topo. E o único que nela esteve da sua origem até ao fim. E sempre presente e
activo, logrando passar dez anos na clandestinidade com a mulher (e às tantas
com os filhos também), sem nunca ser apanhado pela PIDE. Pormenor que ele nem
realça, preferindo revelar a sorte (mas a sorte merece-se) a que deveu o feito.
E revelando também quanto as acções da ARA deveram à
estratégia de um partido.
Braço
armado do PCP (de que RN era militante, sê-lo-ia até 90, integrando o comité
central de 72 a 82), a ARA tinha, no entanto, uma grande autonomia. Digamos que
onde o PCP era sobretudo ideologia, a ARA era sobretudo acção – armada. Os
actos de sabotagem que praticou não tinham, contudo, a ilusão de derrubar o
regime, tão só (e já não era pouco) de o desgastar. Menos pela sabotagem em si
do que pela agit-prop consequente. Mas a ideologia estava subjacente. Uma
ideologia que RN agora (filiado no PS, depois de, entre 95 e 99, ter sido seu
deputado independente) está longe de subscrever. O que não esconde, antes
acentua. Sem jamais oferecer a imagem de um arrependido. Bem pelo contrário.
Não o explicitando, RN orgulha-se – hoje – do que fez então. E é sem dúvida
este assumir histórico que contribui para que o seu livro “respire”
autenticidade por todos os poros. E respire também, aqui e ali, aquilo que é
sempre mais difícil de conseguir em História: o espírito do tempo. Sobretudo
quando passa célere e a memória se esfuma.
RN não o ignora. De tal modo que, a págs. 307 (afinal
sempre sublinhei alguma coisa), escreveu assim: “Quem não viveu esses tempos de
medo, de pobreza, de exploração, arbítrio e mesquinhez não consegue avaliar! E
sem saber isto pode até pensar que as pessoas que iam para a clandestinidade
eram heróis, loucos ou mártires quando na realidade eram pessoas como as
outras. Talvez mais informadas, mais indignadas ou mais trituradas pela
engrenagem”.
Pessoas
que, no final, reencontramos numa espécie de dicionário biográfico. Ilustrado
com as fotos de cada uma. E são como nós. Elas a quem – pelo que foram, pelo
que fizeram, pelo que arriscaram, independentemente do seu percurso posterior –
devemos hoje alguma da liberdade que fruímos.
Rodrigues da
Silva