quarta-feira, 5 de junho de 2019

O livro ARA e a crítica no Jornal de Letras

Em 2000 a Editorial D. Quixote publicou o meu livro ARA - Acção Revolucionária Armada onde se diz quase tudo sobre esta organização armada não terrorista. O que se fez, quem fez, como e quando se fez, com que medos, sustos, atrevimentos, ousadias, coragens.
O livro teve uma grande tiragem e a crítica criticou. Por exemplo o Jornal de letras pela palavra de Rodrigues da Silva, jornalista que eu não conhecia nem me conhecia diz coisas que até... até me deixou incrédulo.
JL JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS 

       Ano XX / N.º 789 de 27 de Dezembro de 2000 a 9 de Janeiro de 2001

       Secção IDEIAS, página 40.  Texto de Rodrigues da Silva, editor do JL

 HISTÓRIA       Segredos da A. R. A.

Defeito ou virtude? Hesito. É que “ARA – Acção Revolucionária Armada. A história secreta do braço armado do PCP” (Dom Quixote, 406 páginas, 3500$00), o livro de Raimundo Narciso (RN), eu li-o como... um romance. Não era esta a intenção. A intenção era outra, e, mal o comprei fui-me a ele, armado daquilo de que Marguerite Yourcenar sempre se muniu no acto de ler: um lápis. Para sublinhar. O que amiúde mais me acontece num ensaio ou na poesia do que num romance. Para, não raro, concluir que quão mais sublinhado fica um livro, tão melhor ele é (ou eu o achei). No caso do de RN, porém, sucedeu algo de inédito. No final está sublinhado como se fora o que, em rigor, não é: uma obra de ficção. Defeito, pois, ou virtude?
Virtude – assumo. E virtude porque o pouco sublinhado da minha leitura deve-se ao estilo que RN imprimiu à sua obra. Mais do que um relatório, a vida. Isso mesmo: a vida. E, ao escrever isto, descubro (só agora) que a narrativa do livro fluiu a um ritmo algo cinematográfico. Porque, se por um lado há uma descrição pormenorizada e exaustiva de todas as acções da ARA, com a relação dos seus comos, quês e porquês, por outro não deixa de haver – sempre – o traço humano, o ser e estar pessoal e anímico dos protagonistas, o alvoroço de sentimentos. Mais: recorrendo ao “flash back”, RN subverte até, de quando em vez, a ordem cronológica da narrativa para, após dizer da acção, dizer de como era este ou aquele que a executaram.
O resultado é fascinante. Porque, para além da História, temos as histórias. E é, decerto, porque temos as histórias que a História adquire aqui tudo menos um tom épico. Podemos (e talvez devamos) classificar muitos destes protagonistas como heróis da resistência ao fascismo. Mas um herói é sempre um ser distante. O bronze que o embalsama afasta-o de nós, seres comuns. RN tem o extraordinário mérito de, narrando acções heróicas, aproximar de nós os seus executantes. Que nos surgem de carne e osso, não robots, clonados por uma ideologia. São homens e mulheres de corpo e espírito, múltiplas vezes plenos de dúvidas. Mas que, mesmo assim, face a uma situação concreta, optam. Apesar do medo, do medo de falharem, de serem presos, de serem torturados, de passarem anos sem ver os pais, as mulheres (ou os maridos) e os filhos, os seres amados; e há imenso amor nas entrelinhas deste livro.
Livro que RN imbui de um humanismo que só valoriza o retrato pelo menos dos principais membros da organização, como ele próprio, um dos seus dirigentes de topo. E o único que nela esteve da sua origem até ao fim. E sempre presente e activo, logrando passar dez anos na clandestinidade com a mulher (e às tantas com os filhos também), sem nunca ser apanhado pela PIDE. Pormenor que ele nem realça, preferindo revelar a sorte (mas a sorte merece-se) a que deveu o feito. E revelando também quanto as acções da ARA deveram à estratégia de um partido.
Braço armado do PCP (de que RN era militante, sê-lo-ia até 90, integrando o comité central de 72 a 82), a ARA tinha, no entanto, uma grande autonomia. Digamos que onde o PCP era sobretudo ideologia, a ARA era sobretudo acção – armada. Os actos de sabotagem que praticou não tinham, contudo, a ilusão de derrubar o regime, tão só (e já não era pouco) de o desgastar. Menos pela sabotagem em si do que pela agit-prop consequente. Mas a ideologia estava subjacente. Uma ideologia que RN agora (filiado no PS, depois de, entre 95 e 99, ter sido seu deputado independente) está longe de subscrever. O que não esconde, antes acentua. Sem jamais oferecer a imagem de um arrependido. Bem pelo contrário. Não o explicitando, RN orgulha-se – hoje – do que fez então. E é sem dúvida este assumir histórico que contribui para que o seu livro “respire” autenticidade por todos os poros. E respire também, aqui e ali, aquilo que é sempre mais difícil de conseguir em História: o espírito do tempo. Sobretudo quando passa célere e a memória se esfuma.
RN não o ignora. De tal modo que, a págs. 307 (afinal sempre sublinhei alguma coisa), escreveu assim: “Quem não viveu esses tempos de medo, de pobreza, de exploração, arbítrio e mesquinhez não consegue avaliar! E sem saber isto pode até pensar que as pessoas que iam para a clandestinidade eram heróis, loucos ou mártires quando na realidade eram pessoas como as outras. Talvez mais informadas, mais indignadas ou mais trituradas pela engrenagem”.
Pessoas que, no final, reencontramos numa espécie de dicionário biográfico. Ilustrado com as fotos de cada uma. E são como nós. Elas a quem – pelo que foram, pelo que fizeram, pelo que arriscaram, independentemente do seu percurso posterior – devemos hoje alguma da liberdade que fruímos.

Rodrigues da Silva